Por Elisandra Campos
Zami: Uma Nova Ortografia do Meu Nome, livro de Audre Lorde
Neste mês de julho voltamos a dialogar com as mães negras refletindo sobre o dia Mundial do Orgulho LGBTQIAPN+, comemorado durante o mês de junho, com reflexões a partir de leituras afrocentradas e na ancestral sabedoria da tradição dos povos Dagara, encontrados principalmente na costa oeste da África.
Anin Urasse, mulherista africana que vive em diáspora, em seus escritos nos apresenta que o boom do movimento LGBT é um fenômeno social do século XX, tipicamente euro-estadunidense. O termo "lésbica" faz referência à ilha grega de Lesbos, onde a poetisa Safo, montou seu harém de mulheres brancas. Historicamente, no Brasil, de descendências diversas fomos aprendendo a nos nomear a partir de nomenclaturaras criadas por uma única cultura europeia, entretanto que foca a comunidade LGBTQIAPN+ em perspectiva estritamente materialista, reduzindo suas existências à produtos sexuais e a hipersexualização. Na lógica cultural do povo europeu, de tentar ser “universal” e impor sua cultura para todas as outras, existe uma visão reducionista de mundo, que contribui para o apagamento existencial de um povo ao desconsiderar a diversidade e a complexidade das interações coletivas.
Mas é preciso compreender que existem outras formas de ver, pensar e estar neste mundo, que contraria os padrões ocidentais impostos, a exemplo de África, este Continente Mãe, imenso, rico em sabedoria, também complexo e diverso que nos ensina de forma gentil, maternal, a olhar para as relações com afetos.
A partir da perspectiva africana, as relações entre as pessoas carregam valores africanos que servem ao espírito, à comunidade e aos ancestrais. Bem diferente do termo/conceito “homossexual”, ou, “lésbica” (que parte da historicidade ocidental), é comum entre comunidades negras caribenhas o nome "Zami", um termo diaspórico da língua crioulo, que significa algo como “aquela mulher que trabalha junto com outra mulher enquanto amiga e amante”, popularizado pelo livro Zami de Audre Lorde, que busca focar as relações na convivência, na construção diária de amor. Temos ainda outros termos africanos que falam de relações de amor entre mulheres: “alabua; obinilogum; oremi; panchagayê.” E amor entre homens: “adodi, adefantô, adô; adofiró; afofô; akenken; egbere; elenumeyei; eron kibá; obiní nana; obo okó; adodí; okobiri” e outros... Seus significados no geral, nos mostra que as questões do coração, são iniciadas pelo espírito como fonte de orientação da sabedoria interior e conexão com o nosso ser divino, tendo o papel de direcionar os relacionamentos nas comunidades africanas para o bem, cultivando relações mais saudáveis, compassivas e harmoniosas. A autora Sobonfu Somé no livro “O espírito da intimidade”, nomeia esta comunidade como “guardiões” e nos mostra que a relação sexual é energia vital, transformar isto em “oba-oba-produto” é deixar de lado nossa conexão com o sagrado, conforme trecho abaixo:
“As palavras “gay” e “lésbica” não existem na aldeia. Temos, sim, a palavra “guardião”. Os guardiões são pessoas que vivem no limite entre dois mundos – o mundo da aldeia e o mundo do espírito. [...] Todo mundo na aldeia os respeita, porque, sem eles, não haveria acesso aos outros mundos. A maior parte das pessoas no Ocidente define a si e aos outros pela orientação sexual. Essa forma de ver destruiria o espírito dos guardiões. Eles conseguem fazer seu trabalho por causa de sua forte conexão espiritual e habilidade de dirigir sua energia sexual não para outras pessoas, mas para o espírito. Os guardiões estão na divisa entre os dois sexos. São mediadores entre os dois. Eles garantem que haja paz e harmonia entre mulheres e homens. Se os dois sexos estão em conflito e toda aldeia se envolve, os guardiães trarão de volta a paz. Eles não tomam partido. Simplesmente agem como a “espada da verdade e da integridade”.” (SOMÉ, p. 139, 2003)
Quando tiramos o contexto espiritual das nossas relações, homoafetivas ou não, nos tornamos passíveis de exploração e acabamos por reproduzir uma estrutura institucionalizada pelas violências patriarcais que muitas vezes produz homofobia, sexismo e até mesmo relacionamentos vazios e superficiais que nos faz esquecer que cada pessoa neste mundo tem um propósito de vida.
Se os povos africanos existem bem antes do povo europeu, o que nos impede de começar a pensar a partir de seus valores e princípios e não de uma cultura que reproduz dominação em nosso cotidiano que tenta minar nossa capacidade de orgulho de ser quem realmente somos? Essa demora diz muito como o racismo segue ordenando a sociedade brasileira.
Existe um provérbio africano que diz “Quando muda o ritmo do tambor, mudam os passos da dança também!”, mas para que a mudança aconteça não basta somente atos de força de vontade, é preciso organização e estratégias de resistências pessoal e coletiva, para transformar uma sociedade que possa (re)conhecer as diversas formas de amor e de construção de famílias. Então para este dia e em todos os dias que possamos mudar o ritmo da música e sentir a comunidade LGBTQIAPN+ para além de suas orientações sexuais, desejando que possam criar uma revolução de afetos, capazes de contar palavras de um amor saudável, com vínculos verdadeiros de bem viver e refúgio em abraços prolongados.
Este texto é dedicado para todas às primeiras mães africanas do planeta que podiam curar e para que possa servir de inspiração para que nós, possamos ir em busca da verdadeira história que tem também no propósito de vida com o sagrado, medicamento positivo para nossa família e comunidade.
E nossa conversa não termina aqui, ainda temos muito o que descobrir! Que tal continuar essa reflexão interagindo a partir de um vídeo e uma música que vou compartilhar com vocês no fórum de nossa comunidade?
Ficou curiosa? Vamos juntas! Acesse lá e participe!
Elisandra Campos
Que texto afetuoso e carregado de novos conhecimentos. Muito obrigada por isso. Axé